A continuidade de uma herança feita de barro, luz e memória
Desde criança que o barro faz parte da minha vida.
Os meus pais eram ceramistas, iniciaram esta atividade no ano em que eu nasci e o atelier era o meu mundo de brincadeiras, cheiros e texturas. Lembro-me de um dia o meu pai estar a modelar uma escultura e eu, com a curiosidade de uma criança com 2 anos, ter enfiado o dedo na peça. Ele não se zangou — integrou o buraco que eu fiz na forma final. Desde então percebi que o barro acolhe tudo: gestos, acidentes, histórias.
Adorava mergulhar as mãos na barbotina — aquele barro líquido que serve para encher moldes — e sentir-lhe a textura sedosa. Mais tarde, já crescida, comecei a ajudar os meus pais nas várias tarefas: produção, enfornamento, vidragem, embalamento e venda. Cada fase era uma descoberta e uma lição de paciência e cuidado.
Antes do 25 de Abril de 1974, os meus pais trabalhavam por conta própria em fotografia, profissão que mantiveram durante muitos anos, até à queda do regime. O estúdio fotográfico manteve-se como complemento à cerâmica, para a produção gráfica. Foi outra escola para mim: observava, aprendia sobre luz, composição e tempo...ainda me lembro dos momentos na escuridão do laboratório, onde o único som que quebrava o silêncio, era o tic-tac do temporizador analógico.
Na Escola Artística António Arroio, tive uma breve passagem pelo curso de Cerâmica, onde conheci o mestre Querubim Lapa. Acabei por me formar em Fotografia, com professores que me marcaram profundamente, como João Cardoso Ribeiro e Bruno Pelletier Sequeira.
Em simultâneo, comecei a restaurar e vender antiguidades na Feira da Ladra, em Lisboa — uma verdadeira escola de observação e contacto humano. Continuei essa atividade até entrar na Universidade de Évora, onde frequentei o curso de Artes Plásticas.
Mais tarde, trabalhei na PT Comunicações, e durante alguns anos afastei-me da criação artística. Mas a arte tem um modo subtil de chamar-nos de volta. Após uma intervenção cirúrgica de urgência, repensei a minha existência.
Despedi-me e em 2013 retornei à venda de antiguidades. Após o nascimento da minha filha, iniciei a criação deste site enquanto me dediquei à maternidade. Finalmente o site é lançado em 2017, apenas com a venda de antiguidades.
Após a morte da minha mãe, e enquanto cuidava do meu pai doente, uma das suas antigas alunas sugeriu-me dar continuidade às aulas particulares de modelagem cerâmica, que ele havia deixado de dar.
Aceitei o desafio — e voltei ao barro.
Desde então, tenho dedicado a minha vida ao ensino da modelagem em cerâmica, partilhando com as minhas alunas tudo o que aprendi — e continuando a aprender com elas, todos os dias.
Hoje, a Coelho Latino é o espaço onde se encontram todas estas camadas:
a herança familiar, o toque da argila, o olhar fotográfico, o amor pelas peças antigas, o restauro, a criação e o ensino.
Um lugar onde o passado e o presente dialogam — e onde cada peça nasce com alma, memória e gesto.